Notícia

Conflitos no Escritório de Advocacia. Uma questão sem solução?
Lara Selem e Leonardo Leite

Publicado em 27 de junho de 2019


Os deuses condenaram Sísifo a rolar uma rocha sem parar até o topo de uma montanha, de onde a pedra cairia de volta devido ao seu próprio peso. E ele retornaria e começaria de novo, sem descanso, a rolar a rocha morro a cima. Incessantemente. Eles, os deuses, pensaram que não haveria punição mais terrível. (Albert Camus)

Fazendo uma ponte entre o mito de Sísifo e a Advocacia atual, é de se questionar: estaríamos nós, advogados, condenados a estarmos sempre em posição de combate? Será que os termos “conflito” e “advocacia” devem caminhar sempre juntos? Será que “advogado” e “litigante” são sinônimos? Será que o envolvimento de um advogado pressupõe um problema, uma disputa, uma “briga”?

A análise do comportamento padrão do advogado passa pela breve reflexão de alguns conceitos e seus prováveis desdobramentos.

Essa questão tem, possivelmente, origens históricas e é pautado pela tradição que cerca a profissão, fazendo com que o advogado seja, no mundo todo, um dos profissionais simultaneamente mais respeitados e odiados que se tem notícia.

O comportamento do advogado começa a ser moldado durante sua formação básica no curso de graduação, passa pelo que significa a Advocacia perante a sociedade e chega ao dia-a-dia da vida profissional, no cotidiano dos tribunais, das reuniões com clientes, dos trabalhos em equipe dentro do escritório.

O primeiro ponto de nossa análise é o da formação do advogado. A esmagadora maioria de nossas faculdades de Direito, assim como boa parte das estrangeiras, ensina Direito e não propriamente Advocacia. A formação básica do bacharel passa pelo conhecimento dos princípios e fontes do Direito, as leis, a interpretação das normas, o processo e assim por diante..., mas não possui o foco voltado para a formação do advogado propriamente dito, assim como não possui foco para a formação do juiz, do promotor, etc.

Ao receber, desde os primeiros anos, treinamento sobre leis e jurisprudência em paralelo com o direito processual, o acadêmico começa a fixar seu comportamento no aspecto litigante, moldando-o para o combate e fazendo valer seu treinamento de guerreiro. Defender a ética, o cumprimento da lei, das normas, dos direitos, da Justiça, passa, necessariamente, pela luta, pelo conflito, pela briga, pela contenda, pelo contencioso. E isso será, naturalmente, refletido no comportamento do futuro do advogado, na sua forma de pensar e agir, na sua lógica. Aqui, a pedra começa a rolar e Sísifo inicia o cumprimento de sua pena, de sua condenação.

O segundo ponto que analisamos neste artigo diz respeito à Advocacia em si, cujo caráter ainda traz traços de profissão liberal e a legislação em vigor, faz com que o advogado ainda imagine que pode e deve ser independente e combativo, guardião incondicional dos valores e atribuições que recebe da sociedade e do próprio Direito.

Defender o cidadão, a democracia, o estado de direito e a liberdade é básico numa sociedade e num país como o nosso, e a advocacia sempre levantou essa bandeira. Surge assim, claramente, mais um ingrediente importante para moldar o comportamento do advogado. A pedra continua rolando e Sísifo continua a empurrá-la montanha acima, sem parar.

Passamos ao terceiro e último ponto de nossa análise, que diz respeito ao cotidiano da Advocacia nos dias de hoje. A complexidade da nossa sociedade, economia e mercado de trabalho, bem como o relacionamento entre pessoas e empresas, a competitividade do mundo globalizado, a velocidade e o porte da legislação, as novas áreas do Direito e toda a realidade que cerca o advogado, tornou bem mais difícil a arte da Advocacia do “eu-sozinho”, do profissional efetivamente liberal e autônomo, sendo esse tipo considerado hoje uma prática em extinção.

Por isso, fazer parte de uma equipe, nos dias de hoje, é quase imperativo, seja num escritório, seja num departamento jurídico. E é aqui que o comportamento do advogado, moldado para o combate e para a beligerância, entra em xeque. Enquanto trabalhava sozinho, ter espírito combativo, autônomo, de posições firmes e livres, de luta e de intransigência fazia parte do cotidiano. Mas, para trabalhar em equipe, esses comportamentos podem se tornar negativos para a produtividade e até mesmo para a efetiva defesa dos interesses de um cliente.

Em equipe, mais do que espírito combativo, é preciso ter espírito colaborativo, a vontade de somar, de ajudar, de participar, coordenado por uma liderança positiva e concreta - função das mais importantes e complexas para quem gerencia uma equipe de advogados.

Imagine se todos os advogados de uma mesma equipe forem brilhantes, pró-ativos, combativos e competitivos. É de se esperar que os conflitos entre tais profissionais sejam constantes e o alinhamento do trabalho dessas “estrelas” quase impossível.

Não estamos apontando se é certo ou errado ser combativo, nem tampouco pretendemos analisar aspectos puramente pessoais ou de personalidade, nem mesmo dizer se é adequado ou não ser independente e trabalhar sozinho. Propomos uma efetiva análise da situação, da realidade no tocante a esse aspecto importantíssimo da nossa profissão e do efetivo do custo-benefício de um padrão comportamental já sacramentado.

Ao provocar uma reflexão bem mais profunda, perguntamos: Todos esperam que o advogado atue com firmeza e contundência na defesa de uma tese jurídica, mas será que para isso é preciso, e até mesmo adequado em todas as situações, sermos apenas combativos? Será que esse comportamento deve ser trazido para o local de trabalho, para o trabalho em equipe? Até que ponto isso prejudicaria não só a ele mesmo, mas ao grupo ou até ao cliente?

Se por um lado o advogado, nas palavras de César Luiz Pasold, “deve ser dotado de coragem, independência, altivez, dignidade, correção, honestidade, lealdade” e, a esse ensinamento acrescentamos: combatividade e espírito de defesa; por outro, o advogado que trabalha em equipe precisa lançar mão de habilidades e competências como paciência, visão de longo prazo, comunicação eficiente, bom relacionamento interpessoal, organização do tempo e fluxo de trabalho, comprometimento efetivo, trabalho em equipe, disponibilidade, flexibilidade, confiança, compartilhamento de informações e conhecimento, dentre tantas outras.

Entendemos que, apesar da realidade do ensino jurídico e da imagem tradicional da Advocacia na nossa sociedade, como profissional combativo, o advogado moderno pode e precisa experimentar a reprogramação de alguns comportamentos, utilizando aqueles que melhor se adequarem à estratégia de atuação, o lugar e o momento. Na medida em que tiver consciência disso e souber usar essa informação, o bom senso e a sabedoria falarão mais alto, e a probabilidade de êxito será maior.

Trabalhar em equipe é olhar em conjunto para um objetivo maior e comum. Muito mais que luta, precisa integrar forças, habilidades e talentos. Enquanto todos os soldados estiverem preocupados com o objetivo da “guerra” coletiva, não perderão energia e tempo em “batalhas” pela defesa de seus pontos de vista individuais.

Podemos concluir, então, que “conflito” e “advocacia” não precisam e não devem andar juntos o tempo todo. Que “advogado” não é sinônimo de “litigante”. E que a Advocacia, cada vez mais complexa e sofisticada, envolve muitas outras capacidades, competências e habilidades que precisam e podem ser desenvolvidas desde já por todos os profissionais do Direito. Basta querer. Basta mudar.

Assim fazendo, nos libertaremos da condenação do comportamento voltado apenas para o conflito. Não precisaremos rolar uma rocha sem parar até o topo da montanha por infinitas vezes, como Sísifo. A opção é nossa!!

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